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novembro 15, 2011

Um homem


A chuva caiu repentina, mas não suavizou o calor. Ele olhou com melancolia para as coisas sendo banhadas, telhados, verdes, sombrinhas coloridas. Andava se sentindo tão só, muito além de sua própria solidão.
Seus olhos araram a paisagem chuviscada. Desde que ficara inegavelmente evidente que tudo se perdera, experimentava esse vazio pesado dentro do peito. Se fenecera a paixão, ainda a amava... Havia momentos em que se sentia entorpecido pela saudade de tudo que fora ou que prometido pela vida. Sentia falta dela sua, deles dois um do outro - o que não mais poderia, até pensou em reembarcar na viagem, mas não, não mais poderia.
Porque agora aquele outro encontro na vida dela acontecera, longe dele, e cenas incertas o assombravam, roubando-lhe o sono e o senso de direção. Sentia-se desarvorado, as ideias brincando com o inesperado. Alguém a tocara, afinal, provara-a, conhecera-a - teriam ficado abraçados depois, teriam tomado banho juntos (ela gostava)? -, viu-a rindo (ele não mais a fazia rir), dera a conhecer os seus segredos, suas historinhas, sua cor preferida, nada mais restara a ele agora, nenhum presente único. Ela tinha aquele colo lindo sobre o qual ele repousara e acreditara na felicidade tantas vezes. E agora, Outro. Alguém. Tão difícil conseguir parar de pensar. E cada vez que a olhava quase não suportava a certeza de que o encanto se desvanecera, e as tais imagens adivinhadas refluíam, o corpo dela e outro corpo, o prazer renovado, sua vida de mãos dadas com outra vida, outra voz, outras palavras, outra magia. E a saudade que ela devia sentir agora (não dele, não dele...).
Ah, as exigências da paixão (ele ainda lembra quando os dias eram misto de escarlate e azul, e as noites eram de lua e música). Quando ela distraída, olhava-a e sentia como se o tempo não tivesse passado e tudo ainda fosse um ontem bom. Mas eis que as tais cenas projetavam-se em sombras a cravar as garras em seu peito e neutralizavam qualquer carícia, o gesto não lhe pertencia mais, ela já caminhava por dentro de outra história. Outras lições a esperavam...
Às vezes ela parecia voltar ao que foram antes - uma espécie de complacência pelo abandono dele. Um antigo carinho... como se soubesse... que ele estava morrendo. As mentiras (não, não, pequenas omissões) o haviam ferido mortalmente - ter descoberto, ter suspeitado versus ter sabido: diferença essencial. Mas não a culpava. Ele falhara quando se deixou derrotar pelo cotidiano, pelas transformações que vieram dar à praia de ambos, quem sabe pelo quê mais. Começou a oferecer-lhe tédio, começaram a trocar farpas e pequenas mágoas e minutos tristes e silêncios e distâncias e fel. Restava-lhe entender e recolher-se para dentro de si mesmo, lá para o fundo da caverna, onde não corresse mais o risco de conhecer ninguém, porque não queria conhecer ninguém, sabia que não teria mais ninguém, só o que queria eram noites breves e dias mais breves ainda. E que ao menos ela voltasse a voar. (Telma Monteiro)

outubro 10, 2011

Um dia, Carpe Diem...


...viver implica esquecer a maior parte dos rastros...
Caio Meira

Sinto saudade.
Das gelatinas aos montes que devorávamos, ao sabor dos passos dentro das tantas noites. A lua nos seguia, cúmplice, e luzes relampejavam a nossa passagem, gente e carro na longa avenida dividida por um canal. Risos e segredo e febre, todo o tempo do mundo ao nosso lado.
Sinto saudade.
Essencialmente da solidão compartilhada e do estar aqui - sempre. Não importa se inverossímel, mas foi, tão concreto - ah, que chuva com vento veio e devastou nossas historinhas ora sessão da tarde, ora carvão em brasa? E aquele nosso perfume, e aquelas nossas músicas - porque não, nunca mais (re)sentí-los, renascermo-nos. Porque tudo agora (ainda) dói - sons, sabores, a cor azul, a distância infinita entre centímetros...
Por isso, e por toda a beleza e torvelinho que se infiltrou (ou perfurou) minha vida e incitou improvisos e recriou afetos, é que agora escrevo, entre a madrugada e o sono, rendo-me enfim à necessidade de dar corpo a uma despedida. Desabo sobre mim mesma, árida, profundamente estúpida talvez, e nem quero pensar em desperdícios e danos.
Porque é hora de migrar, ainda que desacertadamente, pés e peito cansados, migrar por terra, posto que asas quebradas. Calar, aprender a conviver com o próprio tumulto nos confins de mim. E em horas pesadas demais, apunhalar o vazio, incontáveis vezes, por puro desamparo.
Porque não sou um cachorro capaz de atravessar lonjuras só para voltar para casa. Só sei cruzar eternidades, tentando voltar para algo que não sei que seja, definidamente pelo indefinido*, quem sabe o que seria? (Telma Monteiro)


* Verso de Fernando Pessoa

A festa da Naza


   Ontem dei uma de turista, apreciando Belém com olhar de flanêur, estrangeiro mesmo, acabando de chegar na cidade das mangas fartas.Ia vendo as estruturas se erguendo ante meus olhos cintilantes de espera.Muros sendo pintados, fachadas decoradas, jardins ornados com flores. Um azul, branco e amarelo tomando conta das vistas transeuntes e das frentes dos órgãos públicos e casas de família. Um arsenal humano de trabalhadores da construção civil (minha amada construção civil!), autônomos, ambulantes, lojistas, tomam seus postos na cena que aos poucos vai sendo erguida sob o pseudônimo de festa.
   O Círio visto pelos bastidores da Cidade da Fé tem uma corda forte e vigorosa que passa e atravessa Belém do Pará bem antes da procissão da Santa chegar. Belém se abre em cores, flores e sabores, porque o tempo da fé aqui, a propósito, é todos os dias e a gente nossa de cada dia é uma gente de reunião, de encontro e de maniçoba a cada aniversário.
   Hospedemos, então, esse tempo de graça, pra mais uma vez declarar nossa gente paraoara embebida de mundo, de gente, de aconchego humano e de saudade quando isso tudo se torna lembrança.

Aos que fazem o Círio de Nazaré nos bastidores,
tornando o invisível visivo: 
a fé que anima a gente a significar o humano da gente. Sempre!

Rosilene Cordeiro, em 05 de outubro de 2011


outubro 03, 2011

4º dia do mês de outubro - Dia dos Animais


   Mingo. Shakti. Hércules. Tuísca. Free. Tuffy. Watson. Lobinho. Samantha. Belita. Sam. Milky. Bernardo. Xena. Tobias. Frida. Núbia. Kerina. Estrela. Berdine. Clarice.
   Xeninha. Rocha. Cleo. Xuxa. Docinho. Bombom. Angelina. Missing. Lillo. Nanny. Wladilene. Mafalda. Matilda. Minduim. Pepita. Mia. Midnight. Rochinha... e alguns mais.
   A todos esses que estiveram e que estão no meu universo particular, distraindo-me das asperezas da vida, reconhecendo minhas tristezas secretas, olhando-me nos olhos, seguindo-me com os olhos, achegando-se, falando a preciosa linguagem do silêncio, salvando-me de mim,... eu agradeço. Todos sempre, para todo o sempre, no meu coração.



* Imagens: A cadela Núbia e o gato Xeninha (arquivo pessoal).

O melhor amigo dos escritores

O melhor amigo dos escritores (clique aqui para ler o artigo completo no blog da L&PM)

Eu gosto de gatos porque...

Eu gosto de gatos porque... (clique aqui para ler o artigo completo no blog da L&PM)

setembro 03, 2011

Emotio, ergo sum *


   Curiosidade. Transe hipnótico. Aflição. Essas sensações, exatamente nessa ordem, pulsaram-me diante da viagem cênica Em Algum Lugar de Mim. Corpos e luzes ante meus olhos, a compor um quadro fluente e feérico. Três condenados aprisionados numa espécie de ondulação do tempo, atravessando portais, procurando-se e reencontrando-se, ora infantis, ora ensandecidos, ora simplesmente adultos juntos mas em solidão.


   Para o talento e a visceralidade artística bastam um pouco espaço, velas, latas, fósforos, arames. O resto são vozes, suor, cabeleiras, catarse, pequenas chamas, sombra e escuridão. Doçura e delírio nas palavras iguais e renovando-se, experimentando tons, cores, vidas. Verbo e luz.
   A cortina translúcida se fecha e me deixa uma sensação de alívio: ufa, estou livre para voltar à realidade normatizada. Mas e essa estranha saudade dos momentos de vertigem?

(Com o pensamento em Os Avuados do Teatro, Belém/PA)


* Emociono-me, logo existo.

agosto 01, 2011

Dúvidas cruéis!


  • Se Deus está em todo lugar, por que as pessoas olham para cima a fim de falar com Ele?
  • Como Tarzan conseguia se barbear?
  • Se a Mônica é do tamanho do Cebolinha e do Cascão, por que eles a chamam de baixinha?
  • Por que as mulheres abrem a boca ao passar creme no rosto?
  • Se casamento é bom, por que precisa de testemunhas?
  • Se eu fizer um seguro de vida para o meu gato, precisarei pagar sete vezes mais ou sete vezes menos?
  • Por que uma cenoura é mais laranja do que uma laranja?
  • Se toda regra tem exceção, e isso é uma regra, qual é a exceção?
  • Se tempo é dinheiro e tenho tempo sobrando, eu estou rico?
  • Como a placa É PROIBIDO PISAR NA GRAMA foi colocada lá?
                                                      (Fernando Melis, revista Seleções, outubro/2002)

julho 03, 2011

Campanha premiada

O livro da selva, de Rudyard Kipling

O mágico de Oz, conto de L. Frank Baum



O flautista de Hamelin, conto dos Irmãos Grimm

   Esta campanha de posters da Young & Rubican Malasia para seu cliente Penguin Books ganhou Leão de Bronze em Outdoor no Festival de Cannes 2011. As peças publicitárias anunciam os audiobooks da empresa de uma forma bem lúdica e inusitada, apresentando os personagens dos livros entrando pelo canal do ouvido. Clique nas imagens e poderá vê-las ampliadas. Notícia extraída do blog EBooks Gratis.

maio 21, 2011

Kurare, o criador

   Esta semana, forçosamente de molho devido a uma (mais uma!) bronquite, vadiando aqui e ali, dei com o blog Kurare, do Carlos Kurare (humorista, escritor, poeta, locutor, astronauta, fotógrafo nas raras horas vagas... e Babieca, o cavalo!). Próprio pra quem gosta de um dedim de prosa breve, irreverente e espirituosa (algumas vezes com um certo toque espiritual...).  E, ora veja só, o que me levou ao blog foi uma imagem...
   Quem for ao blog, perceberá o domínio feminino no grupo de seguidores. Por que será?

  • Eu aprendi ao longo da vida que se pega mais moscas com mel do que com vinagre. Meu único problema agora é... o que fazer com as moscas?
  • Brinco de esconde-esconde com a morte há cinco décadas! Mas a cada dia fica mais difícil achar um lugar para me esconder.
  • Para meio entendedor, boa palavra basta.
  • Eu bebo até café frio! Desde que a companhia seja quente...
  • Onde não há amor, a intimidade não permeia. O sexo, nessas ocasiões, molha a pele,...mas não lava a alma.
  • Tenacidade, persistência, paciência na medida certa são forjas para moldar-se um bom caráter. Edison queimou muitas lâmpadas até conseguir acender sua ideia.
  • Os extremos não se tocam... e não me tocam.
  • Toda lagarta é uma borboleta em potencial.
  • A vida não é escolha. A vida é um jogo de pôquer com o destino, onde a sorte e a perícia decidem o jogo.
  • Casa? Nunca penso em casa. Penso em lar. Casa é coisa de arquitetos e engenheiros. Gente como eu quer um lar!
  • Vou para onde a paixão me levar; e fico onde o coração assim o desejar.
  • Basta-me um sopro de mar para eu me navegar!

    * Imagem. Final de tarde em Sampa,
    foto de Carlos Kurare.

      abril 03, 2011

      Literatura: segredos do ofício


      Truman Capote (escritor norte-americano, 1924-1984) não começava a escrever antes de ter uma ideia clara do que seria o último capítulo.

         

         Henry James (escritor norte-americano, 1843-1916) detalhava o cenário capítulo por capítulo antes de começar a escrever.

         Henry Miller (escritor norte-americano, 1891-1980) costumava começar a trabalhar logo após o café da manhã, quando então sentava-se imediatamente diante da máquina. Se via que não conseguia escrever, simplesmente desistia. Revisava ou modificava um texto muitas vezes. Deixava o texto de molho durante algum tempo (um mês ou dois) e só então retomava o trabalho, agora com outros olhos. Contudo, nem sempre o processo era assim, porque às vezes o texto já saía quase como ele gostava.


      Fernando Sabino (escritor e jornalista brasileiro, 1923-2004) às vezes começava a escrever como um principiante, ou seja, sem saber o que dizer. Então escrevia a primeira palavra a segunda e a próxima, até o texto ficar pronto para, finalmente, saber sobre o que ia escrever.



         Françoise Sagan (escritora francesa, 1935-2004) também afirmava que precisava começar a escrever para ter ideias.

         T. S. Elliot (poeta, dramaturgo e crítico literário inglês, 1888-1965) escrevia parte à máquina. Porém, boa parte de sua peça The Elder Statesman foi a lápis. Quando ele mesmo datilografava, fazia muitas alterações. Três horas por dia era mais ou menos o quanto conseguia trabalhar, em termos de criação. Mas o que escrevia dentro desse tempo, no dia seguinte nunca lhe parecia satisfatório.

         Ernest Hemingway (escritor norte-americano, 1899-1961) apontava lápis, primeiramente. E sempre reescrevia, na manhã seguinte, o trecho produzido no dia anterior.Quando terminava, repassava tudo outra vez. Mas o número de vezes em que isso acontecia variava de caso para caso. Em Adeus às Armas, por exemplo, o escritor reescreveu a última página trinta e nove vezes. Quanto aos títulos, escolhia dentre uma lista que elaborava só depois de terminar o conto ou livro.

         Gore Vidal (escritor norte-americano, 1925), antes de começar a escrever, quase sempre lê durante uma ou duas horas. Diz que faz isso para limpar a mente. E toma um café. "Aí a musa vem ao meu encontro." Reluta em começar a trabalhar e age da mesma forma quando chega a hora de parar. Considera que o mais interessante na tarefa de escrever é observar como o ato apaga o tempo. Para ele, nestas situações, é como se três horas parecessem três minutos.E nunca relê um texto até terminar a primeira versão.

         Georges Simenon (escritor belga de língua francesa, 1903-1989) preferia começar rabiscando algumas notas... num envelope de tamanho ofício. Colocava dados gerais sobre os personagens, mas isso não representava o enredo da história. Nesse momento do trabalho, o autor não sabia o que iria acontecer com os personagens, cujos nomes algumas vezes mudava enquanto escrevia.

          Pra finalizar, duas curiosidades mínimas: William Faulkner (escritor estadunidense, 1897-1962) compôs O Som e A Fúria quando teve a visão rápida e repentina do assento sujo do calção de uma garota. E D. H. Lawrence (escritor inglês, 1885-1930) fez sete ou oito rascunhos de The Rainbow até considerá-lo pronto. 

      março 01, 2011


         Tenho uma biblioteca (será necessário dizer "particular"?). Pequena, por volta de - o quê? - mil e quinhentos, dois mil livros, por aí. Sou muito orgulhosa dessa posse.
         Lembro da primeira biblioteca que vi, a do meu primeiro colégio; fiquei fascinada. Desejei ter uma - ou seja, não só quis; de-se-jei. E penso que isso fez toda a diferença. Quis muito nessa vida; desejei bem pouco.
         Cedo comecei a guardar o dinheiro do lanche para comprar livros ou discos. Alguns comprei de olhos fechados. A Morte de D. J. em Paris, do Roberto Drummond, foi um deles. O estilo foi um baque para uma leitora de clássicos até então. É um dos meus livros do coração, tipo aqueles 'que se levaria para uma ilha deserta'.
         Outros dois comprados à custa de secretas economias foi O Jardim Selvagem, de Lygia Fagundes Telles (amo!),  e Laços de Família, de Clarice Lispector (deusa!). Capa dura, azul-escura, letras (que um dia foram) douradas, faziam parte de uma coleção. Umas preciosidades, minhas felicidades clandestinas! E houve um, muito especial, meu primeiro Fernando Pessoa (que veio antes do Roberto Drummond, da Lygia e da Clarice): O Eu Profundo e os Outros Eus. Tenho-os comigo até hoje, deuses da biblioteca. Amarelados, sublinhados aqui e ali (gesto incontrolável), muito usados. Muito amados. 
         Outros foram vindo através dos anos, pelos mais diversos caminhos e por mãos outras... Mas a maioria saiu de sebos, garimpados com todo prazer e paciência; e o encantamento diante da obra resgatada, encontrada, descoberta justificou o tempo (perdido? Não!). Descobri-me além de leitora, bibliófila - gosto de tocar o livro, cheirá-lo, sentí-lo perto de mim, vê-lo em meio aos outros, vê-los juntos, amontados, apertando-se em fileiras, cores diversas, delicados ou imponentes.
         Sim, são muitos livros, mas nem todos que já li estão aqui. Alguns se foram sem eu saber, outros foram presenteados com todo o gosto, e uns poucos foram invadidos e devorados por tribos de cupins e traças. E há tantos, tantos mares de linhas e entrelinhas não lidas, que me bate um misto de tristeza e desespero: terei ainda tempo? Um livro precisa ser lido para ter sentido, para justificar-se. Precisa ser aberto, navegado página a página... Haverá tempo? (Telma Monteiro)

                                * Imagem: Livros, de Vincent Van Gogh

      fevereiro 13, 2011


         Coisa triste, despedida. Despedida travestida de desencanto, desencanto inspirando desistência. O acaso, às vezes, é um deus muito cruel em seus passos distraídos; logo a coisa que espanta e machuca está lá, subitamente, como uma dessas figuras que saltam de dentro de uma caixa, na nossa cara, impulsionadas por uma mola. E o coração é traspassado por uma setinha de gelo - eis a revelação!
         De repente, nenhuma pergunta é mais necessária, que se danem os subterfúgios, as pequenas (mas essenciais) omissões a camuflar estranhas verdades, compondo uma falsa tapeçaria. O ato fala por si, tanto para o bem como para o mal. Então ressurge a dor, mas desta vez lhe causa uma espécie de entorpecimento, assim uma comoção - ah, esse dom para o ridículo, para a ingenuidade, já deveria tê-la cansado, mas não dependia só dela. Dependia da lua que vadiava no céu quando nascera, dependia do seu ascendente astrológico, do seu signo chinês, do seu anjo vez ou outra adormecido, do orixá  a quem não agradara, de tantos rituais que quebrara... E de uma coisa que deveria estar no Outro: a delicadeza de ser sincero para evitar que o sentimento morresse e se espalhasse em estilhaços por um caminho cru e vazio.
         Um gato preto e monástico a observa, perplexo: Como chegaste a duvidar da resposta que já sabias? Que tolice ignorar o olhar transcendental e esperar um sinal do acaso. A verdade sempre esteve lá onde os fatos a deixaram, a despeito do novo cenário. Apenas salva as lembranças dos perfumes e dos risos e da leveza e do calor e de quando era inacreditavelmente simples ser feliz (ainda que por um segundo, que podia ser todo o tempo do mundo, onde cabiam arrepios sutis e pecados febris). Salva o bom, a emoção, as canções. E que fique registrado: a felicidade é possível, ainda que efêmera e, quem sabe, enganosa. Hora de acordar. (Telma Monteiro)

      fevereiro 02, 2011

      Convite para tomar açaí


         Açaí antes da chuva da tarde. Açaí fino, médio e grosso. Açaí especial. Ou açaí papa. Na cuia. Na tigela. Açaí com farinha baguda. Açaí com tapioca. Açaí de pobre e de rico. Açaí depois do almoço. Ou almoçar açaí. Com peixe frito. Pescada, filhote ou pirarucu. Açaí com camarão. Açaí com jabá. Açaí até com pupunha. Açaí geladinho e bem doce. Açaí em família. No sábado. E em qualquer dia. Açaí que dá preguiça e pede sesta na rede. Açaí que deixa a boca roxa pra tornar paraense o sorriso. E pinta os dentes, a língua, os dedos e até a roupa. Açaí que marca por fora e por dentro. Açaí que tem bandeira pra se anunciar. Açaí, minha bandeira vermelha. Açaí da minha terra. Açaí do meu pará. Açaí em Belém do Pará. (Stella Pessôa)

      janeiro 05, 2011

      Uma perda delicada


         A mulher tinha poucas riquezas. Quase dois mil livros - arte a granel, quatro fêmeas caninas, onze gatos, uma goiabeira, um pequeno jardim, incensos, estatuetas e bibelôs, muita, muita música e filmes. Colecionava marcadores de livros.
         Morava numa rua larga e algumas vezes até que tranquila, bem ao lado de um pequeno bar, uma espelunca que feria a paisagem com falatório exacerbado, palavrões e gritos, promoções ilícitas e cheiro de lombra. Sim. Homens (?) que tinham lar, mas era como se não tivessem; preferiam estar juntos, juntos, o maior tempo possível, juntos sentiam-se mais poderosamente machos para agredir o mundo e menosprezar o resto. 
         Entre eles, um que nutria uma obsessão secreta (até para ele mesmo) pelo dono do bar (um careca de carnes moles), adorava gritar seu nome por nada enquanto coçava as partes; e quando voltava para casa, rápida e tardiamente, havia uma filha que por ser filha, e tão nova, achava que era certo suportar umas carícias atrevidas e enojantes. 
         E havia também um outro rapaz que escravizava a avó, doentiamente louca por ele e que andava pelas ruas cambaleante, devido à fraqueza pela fome mal saciada (afinal, o maior do melhor sempre era para ele) e também pelas porradas, roupas e calçados rotos, exalando mau cheiro, cada vez mais presa a um crescente delírio. Quando o dinheiro da aposentadoria acabava, ela era posta a pedir mais, não importa a quem, porque ele precisava de suas doses diárias de pó e fumo. E ele não era só, havia uns outros que o ajudavam a violentar o mundo. E todos esses, e mais os policiais que moravam na rua e sabiam de tudo e recebiam a sua parte e sorriam e fechavam os olhos - todos eram protegidos por um cujo nome é Legião.
         O que a mulher dos dois mil livros tem a ver com isso? Pois ela tinha onze gatos. Dentre eles, uma gata delicadíssima, discretíssima - Missing. Delicadinha, delicadinha, nem miava para pedir comida; aguardava como uma dama, e comia sem alvoroço. Fora achada, ainda pequena, na rua. Sem mais nem menos ficou doente, sofreu, sofreu por três dias antes de morrer, entre espasmos silenciosos (terá subido aos céus e estará sentada à direita de Deus-Pai Todo Poderoso?). Não, não cheirava nem fumava, não receptava coisinhas roubadas, não espancava a avó, não ofendia ninguém, não assaltava, não corrompia - não, não, como alguns poucos que ainda resistem por aí; mas não são esses que mais se f...? (Telma Monteiro.)

      Do caderno de rabiscos

      Todo mundo
      tem um projeto.
      Se você escolher navegar
      não demore uma vida.

      Sabe o que isso significa?

      Tem  pes  ta  de!

      janeiro 02, 2011

      RECEITA DE ANO NOVO - Carlos Drummond de Andrade


      Para você ganhar um belíssimo Ano Novo
      cor de arco-íris ou da cor da sua paz,
      Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
      (mal vivido talvez ou sem sentido)
      para você ganhar um ano
      não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
      mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
      novo
      até no coração das coisas menos percebidas
      (a começar pelo seu interior)
      novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
      mas com ele se come, se passeia,
      se ama, se compreende, se trabalha,
      você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
      não precisa expedir nem receber mensagens
      (planta recebe mensagens?
      passa telegramas?).

      Não precisa fazer lista de boas intenções
      para arquivá-las na gaveta.
      Não precia chorar de arrependido
      pelas besteiras consumadas
      nem parvamente acreditar
      que por decreto da esperança
      a partir de janeiro as coisas mudem
      e seja tudo claridade, recompensa, 
      justiça entre os homens e as nações,
      liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
      direitos respeitados, começando
      pelo direito augusto de viver.

      Para ganhar um Ano Novo
      que mereça este nome,
      você, meu caro, tem de merecê-lo,
      tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
      mas tente, experimente, consciente.
      É dentro de você que o Ano Novo
      cochila e espera desde sempre.

              * Dedico este poema a todos que visitaram este espaço - pelo que muito agradeço e espero continue em 2011!