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janeiro 05, 2011

Uma perda delicada


   A mulher tinha poucas riquezas. Quase dois mil livros - arte a granel, quatro fêmeas caninas, onze gatos, uma goiabeira, um pequeno jardim, incensos, estatuetas e bibelôs, muita, muita música e filmes. Colecionava marcadores de livros.
   Morava numa rua larga e algumas vezes até que tranquila, bem ao lado de um pequeno bar, uma espelunca que feria a paisagem com falatório exacerbado, palavrões e gritos, promoções ilícitas e cheiro de lombra. Sim. Homens (?) que tinham lar, mas era como se não tivessem; preferiam estar juntos, juntos, o maior tempo possível, juntos sentiam-se mais poderosamente machos para agredir o mundo e menosprezar o resto. 
   Entre eles, um que nutria uma obsessão secreta (até para ele mesmo) pelo dono do bar (um careca de carnes moles), adorava gritar seu nome por nada enquanto coçava as partes; e quando voltava para casa, rápida e tardiamente, havia uma filha que por ser filha, e tão nova, achava que era certo suportar umas carícias atrevidas e enojantes. 
   E havia também um outro rapaz que escravizava a avó, doentiamente louca por ele e que andava pelas ruas cambaleante, devido à fraqueza pela fome mal saciada (afinal, o maior do melhor sempre era para ele) e também pelas porradas, roupas e calçados rotos, exalando mau cheiro, cada vez mais presa a um crescente delírio. Quando o dinheiro da aposentadoria acabava, ela era posta a pedir mais, não importa a quem, porque ele precisava de suas doses diárias de pó e fumo. E ele não era só, havia uns outros que o ajudavam a violentar o mundo. E todos esses, e mais os policiais que moravam na rua e sabiam de tudo e recebiam a sua parte e sorriam e fechavam os olhos - todos eram protegidos por um cujo nome é Legião.
   O que a mulher dos dois mil livros tem a ver com isso? Pois ela tinha onze gatos. Dentre eles, uma gata delicadíssima, discretíssima - Missing. Delicadinha, delicadinha, nem miava para pedir comida; aguardava como uma dama, e comia sem alvoroço. Fora achada, ainda pequena, na rua. Sem mais nem menos ficou doente, sofreu, sofreu por três dias antes de morrer, entre espasmos silenciosos (terá subido aos céus e estará sentada à direita de Deus-Pai Todo Poderoso?). Não, não cheirava nem fumava, não receptava coisinhas roubadas, não espancava a avó, não ofendia ninguém, não assaltava, não corrompia - não, não, como alguns poucos que ainda resistem por aí; mas não são esses que mais se f...? (Telma Monteiro.)

Do caderno de rabiscos

Todo mundo
tem um projeto.
Se você escolher navegar
não demore uma vida.

Sabe o que isso significa?

Tem  pes  ta  de!

janeiro 02, 2011

RECEITA DE ANO NOVO - Carlos Drummond de Andrade


Para você ganhar um belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).

Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precia chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa, 
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

        * Dedico este poema a todos que visitaram este espaço - pelo que muito agradeço e espero continue em 2011!