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NOTÍCIAS *INFORMAÇÕES * DISTRAÇÕES * IMPRESSÕES * PULSAÇÕES

fevereiro 23, 2010

Ah, os primeiros...


  Tabacaria foi o primeiro poema do Fernando Pessoa que eu li: "...Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,/E cantou a cantiga do Infinito numa  capoeira,/E ouviu a voz de Deus num poço tapado." Do Carlos Drummond de Andrade foi A bruxa - paixão à primeira vista! Da Lygia Fagundes Telles foi o conto O jardim selvagem, instigada por um especial da Globo (lembro da Lidia Brondi...). E o conto Feliz aniversário me apresentou a Clarice Lispector.
   Mas a primeira crônica (talvez não tenha sido a primeira, mas a que primeiro ficou encantada dentro de mim) foi Um pé-de-milho, do Rubem Braga. E aquele desenho de um pé-de-milho acima do texto - como as palavras e a imagem provocaram em mim um desejo de ter um também, tinha vontade e terra, corri a plantar. Brotaram três, que chegaram a ficar rapazinhos, contudo não vingaram, foram vencidos sem piedade pelas formigas ágeis e vorazes. Eu não fui capaz de defender o meu sonho.
   Mas não desisti. Ora e vez, quando distraída, o velho sonho me alcança e pés de milho e girassóis dançam ao vento e me convidam e me seduzem: vem, vem... E aquela música*!

   Sol, girassol, verde, vento solar
  Você ainda quer dançar comigo?
   Vento solar e estrelas do mar
     Um girassol da cor de seu cabelo... 


* Um girassol da cor de seu cabelo, de Lô e Márcio Borges


         

   

fevereiro 22, 2010

Um pé de milho

   
   Os americanos, através do radar, entraram em contato com a Lua, o que não deixa de ser emocionante. Mas o fato mais importante da semana aconteceu com o meu pé de milho.
   Aconteceu que no meu quintal, em um monte de terra trazido pelo jardineiro, nasceu alguma coisa que podia ser um pé de capim - mas descobri que era um pé de milho. Transplantei-o para o exíguo canteiro na frente da casa. Secaram as pequenas folhas, pensei que fosse morrer. Mas ele reagiu. Quando estava do tamanho de um palmo veio um amigo e declarou desdenhosamente que na verdade aquilo era capim. Quando estava com dois palmos veio outro amigo e afirmou que era cana.
   Sou um ignorante, um pobre homem da cidade. Mas eu tinha razão. Ele cresceu, está com dois metros, lança as suas folhas além do muro - e é um esplêndido pé de milho. Já viu o leitor um pé de milho? Eu nunca tinha visto. Tinha visto centenas de milharais - mas é diferente. Um pé de milho sozinho, em um canteiro, espremido, junto do portão, numa esquina de rua - não é um número numa lavoura, é um ser vivo e independente. Suas raízes roxas se agarram no chão e suas folhas longas e verdes nunca estão imóveis. Detesto comparações surrealistas - mas na glória de seu crescimento, tal como o vi em uma noite de luar, o pé de milho parecia um cavalo empinado, as crinas ao vento - e em outra madrugada parecia um galo cantando.
   Anteontem aconteceu o que era inevitável, mas que nos encantou como se fosse inesperado: meu pé de milho pendoou. Há muitas flores belas no mundo, e a flor de milho não será a mais linda. Mas aquele pendão firme, vertical, beijado pelo vento do mar, veio enriquecer nosso canteirinho vulgar com uma força e uma alegria que fazem bem. É alguma coisa de vivo que se afirma com ímpeto e certeza. Meu pé de milho é um belo gesto da terra. E eu não sou mais um medíocre homem que vive atrás de uma chata máquina de escrever: sou um rico lavrador da Rua Júlio de Castilhos.

                    (Rubem Braga)

fevereiro 17, 2010

Pulsações


   Perambulo pelas ruas, alma em chagas, por saber a verdade que nos espera. Mas meu olhar é duro, não sofre ao ver os porcos que falam a chafurdar na miséria.
   Extinguem-se as palavras mais doces, uma a uma desertam da humanidade, que fica desnuda e sem saída a não ser enfrentar a realidade do espelho - as lâminas de metal não mentem. Elas dizem: é isso, tu és isso, sempre foste isso, o resto era apenas uma performance de cinismo.
   Mas a hora acabou e é tempo de caminhar sobre as brasas da turbulência.
 
Desejo uma noite invernosa
aurora boreal a me sobrevoar
e eu, árvore densa, encouraçada
meus defeitos incrustados como frutos
em minha copa, sedutores e traiçoeiros
(bem lá atrás ficou a idéia de ser anjo,
não sobreviveria).

Mas... o que o inverno tem a ver com isso?
                    O absurdo.


fevereiro 09, 2010

   Sonhei com a beleza esta noite. Beleza que me quis e por isso se deixou tocar, desnuda de reticências e planos. Acordei estranha e solitária, como se houvesse reencontrado meu mistério pessoal e novamente o perdesse ao abrir da cortina.
   A manhã seguiu flutuando à deriva... A tarde atingiu-me à traição ao atrair meu olhar para aquela ferida. Quem a fizera, o que a fizera? Suspeitei de maldade. Só posso suspeitar e sofrer com essa inexplicável certeza, porque ele, o cão, jamais me dirá nada.
   Caía um pó de chuva e nossos olhos se encontraram e, súbito, aprisionamo-nos num só olhar perplexo e dolorido. Um silêncio terrível explodiu em nossas almas: eu o vi e ele sentia. Ou vide o reverso.
   Fiquei à porta da casa, ele seguiu com passos trôpegos, mal suportando o peso da própria vida - até quando, Senhor deus dos desgraçados? Dono de ninguém, nenhum humano de estimação, pagão, seguiu pela rua molhada, pêlos também molhados, em direção a nada. E aquela ferida larga, aberta, podia-se ver a carne, os nervos. Quem a fizera, o que a fizera?
   Ele foi indo, indo, profundamente vira-lata, puxando um fio invisível a estreitar meu coração. Desumana impotência para reverter a história. Ou algumas histórias.
   E agora é noite funda e fria, céu rosáceo. Talvez ele nem mais viva, que tenha encontrado o amparo que justifique sua via crucis.
   E agora é noite funda e fria, um céu rosáceo recortado na janela. E quem segue trôpego pelas ruas molhadas, ferida ardendo no peito, é meu espírito desamparado. Minha realidade é rasa demais para contê-lo.

Olhar revisitado

hoje eu vi meu príncipe encantado
jovem cristo rei cheguevariano
à solta na cidade, de jeans e camiseta
o cabelo louco bailando ao vento da manhã
trazia um poema no olhar
e uma carta de protesto na mão revolucionária

                                                            (Telma Monteiro)

fevereiro 07, 2010

Maravilhosa Martha

   Chegando perto do carnaval, começa a movimentação em busca de acessórios que dêem vazão à nossa fantasia: plumas, lantejoulas, paetês, purpurina e, por último mas não menos importante, máscaras. Seja no Rio de Janeiro ou em Veneza, a máscara sempre foi um produto carnavalesco de primeira necessidade, pelo seu caráter de mistério e fetiche, (...).
   (...) Máscara serve para não ser reconhecido, estão aí os Irmãos Metralha se valendo desse recurso até hoje. Mas os bandidos de verdade já não a utilizam, ao menos não as feitas de tecido negro, com dois buracos para os olhos e um elástico prendendo atrás. Bandidos usam máscaras, sim, mas são reproduções idênticas do próprio rosto, feitas de pele, osso e cinismo, muito fáceis de encontrar em Brasília. Não são máscaras de aparência, mas de retórica.
   (...) Cada um usa a máscara que lhe cai melhor. Óculos escuros, por exemplo, não são usados apenas como proteção contra o sol. Protegem-nos também de nossas lágrimas, de nossas rugas, de nossos terçóis, de nossa tristeza. Protegem-nos quando queremos olhar sem que nos percebam, quando somos famosos e não queremos ser descobertos, ou quando não somos e queremos parecer que sim. É o Zorro de Ray-Ban.
   (...) Faz falta, para muitos, um segundo rosto. Nada é mais revelador que nossa testa franzida, nosso olhar de medo, nossa face ruborizada, nosso queixo que treme.(...)
   (...) Não é fácil dar a cara sem defesa, entregar o rosto virgem, deixando transparecer nossa alegria e nossa dor. Desmascarar-se é um ato de bravura, por isso perdoa-se a barba que esconde a cicatriz, o silicone que disfarça imperfeições, a maquiagem que resgata a juventudo. É o Zorro de cada um.

          (Martha Medeiros. TREM-BALA, L&PM Editores)