Sonhei com a beleza esta noite. Beleza que me quis e por isso se deixou tocar, desnuda de reticências e planos. Acordei estranha e solitária, como se houvesse reencontrado meu mistério pessoal e novamente o perdesse ao abrir da cortina.
A manhã seguiu flutuando à deriva... A tarde atingiu-me à traição ao atrair meu olhar para aquela ferida. Quem a fizera, o que a fizera? Suspeitei de maldade. Só posso suspeitar e sofrer com essa inexplicável certeza, porque ele, o cão, jamais me dirá nada.
Caía um pó de chuva e nossos olhos se encontraram e, súbito, aprisionamo-nos num só olhar perplexo e dolorido. Um silêncio terrível explodiu em nossas almas: eu o vi e ele sentia. Ou vide o reverso.
Fiquei à porta da casa, ele seguiu com passos trôpegos, mal suportando o peso da própria vida - até quando, Senhor deus dos desgraçados? Dono de ninguém, nenhum humano de estimação, pagão, seguiu pela rua molhada, pêlos também molhados, em direção a nada. E aquela ferida larga, aberta, podia-se ver a carne, os nervos. Quem a fizera, o que a fizera?
Ele foi indo, indo, profundamente vira-lata, puxando um fio invisível a estreitar meu coração. Desumana impotência para reverter a história. Ou algumas histórias.
E agora é noite funda e fria, céu rosáceo. Talvez ele nem mais viva, que tenha encontrado o amparo que justifique sua via crucis.
E agora é noite funda e fria, um céu rosáceo recortado na janela. E quem segue trôpego pelas ruas molhadas, ferida ardendo no peito, é meu espírito desamparado. Minha realidade é rasa demais para contê-lo.
Je suis un chien...
ResponderExcluirE tenho todas as feridas abertas, toda a carne, por enquanto, viva exposta.
Mas não ardo no peito de niguém. Ardo na garganta que me fala; e na carne sadia que mordo!!!
Se ainda estarei liricamente vivo após esta noite?!
E quem dirá...